A guerra sem fim da razão
A batalha de Voltaire pelos direitos humanos permanece inacabada no Brasil e no mundo
SÉRGIO PAULO ROUANET
Especial para a Folha
Em que sentido podemos dizer que a batalha de Voltaire pelos direitos humanos ainda é indefinidamente atual", nas palavras de Valéry?
Ela é atual, no Brasil e no mundo, porque está inacabada. E atual porque apesar de progressos Importantíssimos. muitas das aberraçôes que Voltaire combateu renasceram ou se agravaram. E o que podemos verificar em cada um dos direitos pelos quais Voltaire se bateu.
É o caso do direito à razão, o valor mais alto da Ilustração e o mais decisivo para Voltaire, porque é a condição de possibilidade de todos os outros. O pensamento ainda está sujeito a restrições policiais em grande parte da humanidade. Nos países em que elas não existem, a "servidão voluntária'' induzida pelo conformismo e pela propaganda impede as pessoas de pensarem por si mesmas. Os fundamentalismos religiosos pululam em toda parte.
Nos Estados Unidos e na Suíça, seitas pregam o fim do mundo e abreviam a chegada dos seus adeptos ao paraíso, induzindo-os ao suicídio coletivo. Aiatolás mandam militantes executar escritores sacrílegos, do mesmo modo que os padres do Antigo Regime, segundo Voltaire, armavam regicidas como Jacques Clément e Ravaillac, para maior glória de Deus. Em Bangladesh, uma escritora é condenada à morte por ter ousado criticar o Corão. Hindus e muçulmanos se trucidam mutuamente em nome do Profeta ou de Brama.
No Brasil, vivemos durante duas décadas sob uma ditadura que Mas e proibia livros e prendia escritores, exatamente como na França de Voltaire. Com a redemocratização, os exemplos de intolerância se tornaram raros, mas embora o direito à razão não seja mais cerceado, não se pode dizer que ele esteja entre os mais populares no Brasil. Ao contrário, o irracionalismo se difunde e hoje quase podemos ouvir a reivindicação oposta, o direito ao delírio.
Um mago publica "best seIlers", antigos guerrilheiros consultam astrólogos e veteranas trotskistas rodopiam todas as noites no terreiro. São formas benignas de irracionalismo, compreensíveis sobretudo entre os jovens que se filiam a uma concepção alternativa do mundo, e que vêem na leitura de livros esotéricos uma forma tão legitima de protestar contra o "establishment" religioso como a adesão aos verdes é uma forma legitima de protestar contra o 'establisliment" político. (...)
O direito individual à liberdade é hoje reconhecido nas chamadas democracias industriais, nos antigos países do Leste e em quase, todos os países da América Latina. Mas o socialismo burocrático, na China, na Coréia do Norte e em Cuba, bem como os regimes africanos de partido único, são tão absolutistas quanto as tiranias do tempo de Voltaire, com a diferença de que não são despotismos especialmente esclarecidos e de que a rede de doação dos regimes totalitários de hoje é muito mais eficaz que no Antigo Regime.
Por outro lado, os movimentos segmentares de emancipação continuam muito longe dos objetivos visados. A libertação da mulher ainda não avançou o suficiente, o sexismo continua endêmico na Europa e nos Estados Unidos, e São ainda raras mulheres como a companheira de Voltaire, Madame du Châtelet, que escrevia tratados de álgebra e divulgava a física de Newton. A libertação dos negros ainda é mais retórica que real e não há sinais evidentes de que as populações aborígenes estejam recebendo benefícios muito concretos. nem sequer o direito à vida. O colonialismo terminou como forma ostensiva de dominação política, mas não como colonialismo indireto, agora institucionalizado sob a forma de um pretenso direito à intervenção. ou como subordinação econômica e tecnológica.
Terminada uma noite de 21 anos, o Brasil é hoje um país plenamente democrático, com liberdade pessoal e política reconhecida a todos. Mas se isso é verdade para a liberdade individual, é menos verdade no tocante aos objetivos de emancipação setorial. Contam-se nos dedos as mulheres que ocupam altos cargos executivos ou na magistratura superior (...).
A Lei Áurea ainda é uma mentira para a população negra do Brasil, que vive em sua maioria em condições de pobreza igual ou pior à que ostentavam há um século, que continua sem educação, sem teto, sem alimentação, e que fornece 80% ou mais da população penitenciária ou das vítimas da repressão policial. Os progressos obtidos no que diz respeito à emancipação da população indígena podem ser lidos na crônica policial. nas manchetes do . 'The New York Times''. ou nos relatórios da Aninesty International. A descolonização se consumou há 172 anos, mas não é preciso ser nacionalista, o que como bom iluminista estou longe de ser. para saber que o país ainda tem um longo caminho a percorrer para superar a dependência financeira e tecnológica que o impede de participar igualitariamente dos processos decisórios mundiais.
O direito à justiça está hoje em dia protegido nos principais estados democráticos, e dificilmente veríamos abusos semelhantes aos praticados, no tempo de Voltaire, pelos antigos '~Parlements". Mesmo assim, a existência da pena de morte nos Estados Unidos é um anacronismo cuja abolição ainda não está à vista. Em outros países, além da pena de morte, há punições degradantes. como a chibata, castigos cruéis, como a lapidação de adúlteras, e a criminalização de práticas, como a blasfêmia ou o adultério, que eram severamente punidas no tempo de Voltaire, mas que hoje deveríamos considerar tão irrelevantes, do ponto de vista penal, como a feitiçaria.
No Brasil, não há pena de morte desde a República. Mas há uma pena de morte não-oficial contra crianças de rua e marginais adultos, falsos ou verdadeiros, executada por criminosos escondidos em órgãos públicos. Durante a ditadura militar tivemos a ressurreição da mais covarde das práticas, a tortura (..). O advento da democracia aboliu essa infâmia, mas ela não conseguiu assegurar de todo o direito à justiça, porque como os juizes são os primeiros a reconhecer, propondo, por isso, uma reforma profunda do aparelho judicial, ela continua, apesar de progressos recentes, em grande parte discriminatória e seletiva, punindo as pessoas de baixa renda e deixando impunes os delitos dos poderosos.
O direito ao bem-estar é negado na prática pela pobreza absoluta em que vegeta a maioria da população do mundo. O chamado conflito Norte-Sul é uma conseqüência do desnível de renda entre os países desenvolvidos, cuja população tem padrões de consumo sem precedentes na história mundial, e os países subdesenvolvidos, em que a miséria de massa é certamente mais dramática que a encontrada por Voltaire entre os servos da gleba, quando ele se instalou em Ferney.
Inútil dizer que esse direito é transgredido no Brasil, cujos indicadores sociais estão entre os piores do mundo. Com uma mortalidade infantil de 88 por mil, quase duas vezes mais alta que a de Sri-Lanka, e uma taxa de analfabetismo de 18%, uma das mais elevadas da América Latina, o Brasil está em 500. lugar na escala do desenvolvimento humano, segundo o índice elaborado pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, apesar de pertencer ao grupo das dez maiores economias do mundo.
O remédio, decerto, não é a modernização autoritária apregoada por Voltaire a partir do modelo russo, mas não é, tampouco, a recusa da modernidade. a regressão utópica para um paraíso bucólico, segundo a visão rousseauísta. Depois de 200 anos, os dois adversários se enfrentam de novo, no Brasil: entre Voltaire. que apostava O progresso econômico e tecnológico, e Rousseau, que realizou uma crítica radical da modernidade, é preciso ter a coragem de tomar partido por Voltaire, buscando realização de uma modernidade humana. capaz de assegurar a cem milhões de brasileiros a fruição efetiva do seu direito ao bem-estar.
Enfim, o direito à paz, que parecia ter se consolidado com o fim da Guerra Fria e consequentemente com o fim da ameaça nuclear, tornou-se de novo problemático com os focos de violência armada que explodiram depois da dissolução do império soviético e da Iugoslavia. O discurso dominante, hoje, é o discurso da identidade -identidade cultural, étnica e nacional. Há uma etnizaçâo dos conflitos sérvios versus croatas, russos versus alemães, minorias húngaras versus maiorias rumenas, eslavos ortodóxos versus bósnios muçulmanos, e, no fundo, uma retribalização do mundo, dividido entre comunidades autárquicas. demarcadas segundo critérios lingüísticos, raciais e religiosos.
E o fim do modesto universalismo que havia sido alcançado durante a Guerra Fria, na verdade, dois cosmopolitismos rivais, que apesar de tudo representavam um progresso, mesmo ambíguo, em direção a um mundo sem fronteira culturais ou nacionais. O triunfo do nacionalismo e da política da etnicidade poderão selar o fim de qualquer concepção universalista, sem a qual, como sabia Voltaire, o direito à paz se tornaria ilusório.
País sem conflitos externos, sem inimigos hereditários. sem diferenças culturais gritantes. o Brasil tem tudo para assegurar a seus habitantes pelo menos esse direito.
preciso ficar vigilante para que a maré dos novíssimos particularismos não chegue até nós, seja sob uma forma nacionalista, que nos leve a desenvolver fantasias xenófobas, seja pela importação de uma ideologia da etnicidade, que 'estimule a formação de identidades polonesas no Paraná, de identidades africanas na Bahia e de identidades bororo no Mato Grosso.
Cada vez que alguém começa a falar muito alto de "raízes" e de perda de identidade em conseqüência da invasão cultural estrangeira. está na hora de procurar a saída de emergência: a doutrina do "sangue e do solo" não está longe. Nada poderia frustrar mais radicalmente o exercício do direito à paz, porque a etnicidade não é outra coisa que a mitologilização neo-romântica-' da violência, uma ideologia que faz um SS pensar que é Siegfried e que o autoriza a metralhar um gueto em nome de suas raízes germânicas.
Para os que alegam que no Brasil esses extremos são inconcebíveis, respondo que uma política da etnicidade que tenha Macunaíma como herói é muito mais simpática que a que tem Odin como figura totêmica, mas na dúvida é preferível evitar até um -caráter nacional baseado na falta de caráter: no frigir dos ovos, Macunaíma pode se esquecer de dizer "ai, que preguiça" e, numa crise de heroísmo. defender pela violência essa identidade negativa, esmigalhando-se com seu tacape miolos inocentes. De novo, Voltaire tem razão, sem doses suficientes de universalismo que permitam estabelecer diálogos transnacionais e transculturais, - relativizando todas as identidades coletivas, o direito à paz, exteira e interna. poderia ser ameaçado no Brasil.
Eis a atualidade de Voltaite: a exacerbação, hoje em dia, do fanatismo, da tirania, da injustiça-, da miséria e da violência, mostram como precisamos do homem cuja mensagem infatigável foi a defesa do direito à tolerância e à razão, do -direito à liberdade individual & coletiva. do direito à justiça e à equidade. do direito ao desenvolvimento e ao bem-estar, do direito à paz e à universalidade.
SÉRGIO PAULO ROAUNET é filósofo e embaixador de carreira. autor de "As Razões do Iluminismo". entre outros,- foi ministro da Cultura (governo Collor) e atualmente exerce o cargo de cônsul-geral do Brasil em Berlim (AIemanha.); o texto acima é um extrato de sua conferência no Simpósio Voltaire, em Ouro Preto.
FILÓSOFO ESCREVE SOBRE O BRASIL
VOLTAIRE
Acabamos de ver, no meio das terras da América, multidões de povos civilizados, industriosos e aguerridos, descobertos e dominados por um pequeno número de espanhóis. Mas os portugueses, conduzidos pelo florentino Américo Vespúcio, tinham descoberto desde a época das viagens de Cristóvão Colombo, no ano de 1500, países não menos vastos, não menos ricos e povoados por nações completamente diferentes. Vespúcio chegou às costas do Brasil situadas perto do Equador.
E o terreno mais fértil da Terra, o céu mais puro e o ar mais saudável. O vento do Oriente, que a rotação da terra em seu eixo faz gerar continuamente entre os dois trópicos, depois de atravessar mil léguas de mar, traz ao Brasil uma doce aragem que tempera o calor de um sol sempre vertical e garante uma primavera eterna. As árvores desse solo desprendem um odor delicioso. As montanhas têm ouro, as rochas, diamantes e todas as frutas nascem nos campos não cultivados. A vida dos homens, limitada por toda parte a 80 anos no máximo, estende-se geralmente entre os brasileiros a 128, às vezes até a 140 anos. Ainda hoje vêem-se portugueses decrépitos embarcarem em Lisboa e rejuvenescerem no Brasil.
Mas que espécie de homens habitavam essa região pela qual a natureza tudo fez? Vespúcio conta em uma carta ao gonfaloneiro de Florença que os brasileiros são de cor bronzeada; talvez se se dissecasse um brasileiro com o mesmo cuidado com que se dissecaram negros, encontrar-se-ia em sua membrana mucosa a razão dessa cor.
Quanto aos costumes, eram inteiramente sem leis, sem nenhum conhecimento da divindade, unicamente ocupados com as necessidades do corpo; a mais interessante dessas necessidades era a junção dos dois sexos. Sua maior habilidade consistia no conhecimento de ervas que estimulavam seus desejos e que as mulheres se encarregavam de colher. A vergonha lhes era desconhecida. Sua nudez, que a amenidade do clima lhes impedia de cobrir, não envergonhava ninguém, e servia para confirmar o uso de não distinguir, no acasalamento, nem irmã, nem mãe, nem filha, das outras mulheres.
A necessidade de matar animais para servirem de alimento os levou a inventar o arco e as flechas. Essa era sua única arte. Serviam-se dela em suas disputas de homem a homem, ou de multidão a multidão. O vencedor comia com sua companheira a carne do inimigo. Vespúcio disse que um brasileiro lhe deu a entender que tinha comido 300 homens em sua vida e quando ficou sabendo que os portugueses não comiam seus inimigos demonstrou grande surpresa. Tal era, no mais belo clima do universo, o estado de pura natureza de homens que chegavam à mais avançada velhice em plena saúde.
Tradução de ELIANA SCOTTI MUZZI
Trecho extraído do livro "Essai sur les Moeura", cujo fac-símile -veja acima- será exibido por ocasião do Simpósio Voltaire, em Ouro Preto
A batalha de Voltaire pelos direitos humanos permanece inacabada no Brasil e no mundo
SÉRGIO PAULO ROUANET
Especial para a Folha
Em que sentido podemos dizer que a batalha de Voltaire pelos direitos humanos ainda é indefinidamente atual", nas palavras de Valéry?
Ela é atual, no Brasil e no mundo, porque está inacabada. E atual porque apesar de progressos Importantíssimos. muitas das aberraçôes que Voltaire combateu renasceram ou se agravaram. E o que podemos verificar em cada um dos direitos pelos quais Voltaire se bateu.
É o caso do direito à razão, o valor mais alto da Ilustração e o mais decisivo para Voltaire, porque é a condição de possibilidade de todos os outros. O pensamento ainda está sujeito a restrições policiais em grande parte da humanidade. Nos países em que elas não existem, a "servidão voluntária'' induzida pelo conformismo e pela propaganda impede as pessoas de pensarem por si mesmas. Os fundamentalismos religiosos pululam em toda parte.
Nos Estados Unidos e na Suíça, seitas pregam o fim do mundo e abreviam a chegada dos seus adeptos ao paraíso, induzindo-os ao suicídio coletivo. Aiatolás mandam militantes executar escritores sacrílegos, do mesmo modo que os padres do Antigo Regime, segundo Voltaire, armavam regicidas como Jacques Clément e Ravaillac, para maior glória de Deus. Em Bangladesh, uma escritora é condenada à morte por ter ousado criticar o Corão. Hindus e muçulmanos se trucidam mutuamente em nome do Profeta ou de Brama.
No Brasil, vivemos durante duas décadas sob uma ditadura que Mas e proibia livros e prendia escritores, exatamente como na França de Voltaire. Com a redemocratização, os exemplos de intolerância se tornaram raros, mas embora o direito à razão não seja mais cerceado, não se pode dizer que ele esteja entre os mais populares no Brasil. Ao contrário, o irracionalismo se difunde e hoje quase podemos ouvir a reivindicação oposta, o direito ao delírio.
Um mago publica "best seIlers", antigos guerrilheiros consultam astrólogos e veteranas trotskistas rodopiam todas as noites no terreiro. São formas benignas de irracionalismo, compreensíveis sobretudo entre os jovens que se filiam a uma concepção alternativa do mundo, e que vêem na leitura de livros esotéricos uma forma tão legitima de protestar contra o "establishment" religioso como a adesão aos verdes é uma forma legitima de protestar contra o 'establisliment" político. (...)
O direito individual à liberdade é hoje reconhecido nas chamadas democracias industriais, nos antigos países do Leste e em quase, todos os países da América Latina. Mas o socialismo burocrático, na China, na Coréia do Norte e em Cuba, bem como os regimes africanos de partido único, são tão absolutistas quanto as tiranias do tempo de Voltaire, com a diferença de que não são despotismos especialmente esclarecidos e de que a rede de doação dos regimes totalitários de hoje é muito mais eficaz que no Antigo Regime.
Por outro lado, os movimentos segmentares de emancipação continuam muito longe dos objetivos visados. A libertação da mulher ainda não avançou o suficiente, o sexismo continua endêmico na Europa e nos Estados Unidos, e São ainda raras mulheres como a companheira de Voltaire, Madame du Châtelet, que escrevia tratados de álgebra e divulgava a física de Newton. A libertação dos negros ainda é mais retórica que real e não há sinais evidentes de que as populações aborígenes estejam recebendo benefícios muito concretos. nem sequer o direito à vida. O colonialismo terminou como forma ostensiva de dominação política, mas não como colonialismo indireto, agora institucionalizado sob a forma de um pretenso direito à intervenção. ou como subordinação econômica e tecnológica.
Terminada uma noite de 21 anos, o Brasil é hoje um país plenamente democrático, com liberdade pessoal e política reconhecida a todos. Mas se isso é verdade para a liberdade individual, é menos verdade no tocante aos objetivos de emancipação setorial. Contam-se nos dedos as mulheres que ocupam altos cargos executivos ou na magistratura superior (...).
A Lei Áurea ainda é uma mentira para a população negra do Brasil, que vive em sua maioria em condições de pobreza igual ou pior à que ostentavam há um século, que continua sem educação, sem teto, sem alimentação, e que fornece 80% ou mais da população penitenciária ou das vítimas da repressão policial. Os progressos obtidos no que diz respeito à emancipação da população indígena podem ser lidos na crônica policial. nas manchetes do . 'The New York Times''. ou nos relatórios da Aninesty International. A descolonização se consumou há 172 anos, mas não é preciso ser nacionalista, o que como bom iluminista estou longe de ser. para saber que o país ainda tem um longo caminho a percorrer para superar a dependência financeira e tecnológica que o impede de participar igualitariamente dos processos decisórios mundiais.
O direito à justiça está hoje em dia protegido nos principais estados democráticos, e dificilmente veríamos abusos semelhantes aos praticados, no tempo de Voltaire, pelos antigos '~Parlements". Mesmo assim, a existência da pena de morte nos Estados Unidos é um anacronismo cuja abolição ainda não está à vista. Em outros países, além da pena de morte, há punições degradantes. como a chibata, castigos cruéis, como a lapidação de adúlteras, e a criminalização de práticas, como a blasfêmia ou o adultério, que eram severamente punidas no tempo de Voltaire, mas que hoje deveríamos considerar tão irrelevantes, do ponto de vista penal, como a feitiçaria.
No Brasil, não há pena de morte desde a República. Mas há uma pena de morte não-oficial contra crianças de rua e marginais adultos, falsos ou verdadeiros, executada por criminosos escondidos em órgãos públicos. Durante a ditadura militar tivemos a ressurreição da mais covarde das práticas, a tortura (..). O advento da democracia aboliu essa infâmia, mas ela não conseguiu assegurar de todo o direito à justiça, porque como os juizes são os primeiros a reconhecer, propondo, por isso, uma reforma profunda do aparelho judicial, ela continua, apesar de progressos recentes, em grande parte discriminatória e seletiva, punindo as pessoas de baixa renda e deixando impunes os delitos dos poderosos.
O direito ao bem-estar é negado na prática pela pobreza absoluta em que vegeta a maioria da população do mundo. O chamado conflito Norte-Sul é uma conseqüência do desnível de renda entre os países desenvolvidos, cuja população tem padrões de consumo sem precedentes na história mundial, e os países subdesenvolvidos, em que a miséria de massa é certamente mais dramática que a encontrada por Voltaire entre os servos da gleba, quando ele se instalou em Ferney.
Inútil dizer que esse direito é transgredido no Brasil, cujos indicadores sociais estão entre os piores do mundo. Com uma mortalidade infantil de 88 por mil, quase duas vezes mais alta que a de Sri-Lanka, e uma taxa de analfabetismo de 18%, uma das mais elevadas da América Latina, o Brasil está em 500. lugar na escala do desenvolvimento humano, segundo o índice elaborado pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, apesar de pertencer ao grupo das dez maiores economias do mundo.
O remédio, decerto, não é a modernização autoritária apregoada por Voltaire a partir do modelo russo, mas não é, tampouco, a recusa da modernidade. a regressão utópica para um paraíso bucólico, segundo a visão rousseauísta. Depois de 200 anos, os dois adversários se enfrentam de novo, no Brasil: entre Voltaire. que apostava O progresso econômico e tecnológico, e Rousseau, que realizou uma crítica radical da modernidade, é preciso ter a coragem de tomar partido por Voltaire, buscando realização de uma modernidade humana. capaz de assegurar a cem milhões de brasileiros a fruição efetiva do seu direito ao bem-estar.
Enfim, o direito à paz, que parecia ter se consolidado com o fim da Guerra Fria e consequentemente com o fim da ameaça nuclear, tornou-se de novo problemático com os focos de violência armada que explodiram depois da dissolução do império soviético e da Iugoslavia. O discurso dominante, hoje, é o discurso da identidade -identidade cultural, étnica e nacional. Há uma etnizaçâo dos conflitos sérvios versus croatas, russos versus alemães, minorias húngaras versus maiorias rumenas, eslavos ortodóxos versus bósnios muçulmanos, e, no fundo, uma retribalização do mundo, dividido entre comunidades autárquicas. demarcadas segundo critérios lingüísticos, raciais e religiosos.
E o fim do modesto universalismo que havia sido alcançado durante a Guerra Fria, na verdade, dois cosmopolitismos rivais, que apesar de tudo representavam um progresso, mesmo ambíguo, em direção a um mundo sem fronteira culturais ou nacionais. O triunfo do nacionalismo e da política da etnicidade poderão selar o fim de qualquer concepção universalista, sem a qual, como sabia Voltaire, o direito à paz se tornaria ilusório.
País sem conflitos externos, sem inimigos hereditários. sem diferenças culturais gritantes. o Brasil tem tudo para assegurar a seus habitantes pelo menos esse direito.
preciso ficar vigilante para que a maré dos novíssimos particularismos não chegue até nós, seja sob uma forma nacionalista, que nos leve a desenvolver fantasias xenófobas, seja pela importação de uma ideologia da etnicidade, que 'estimule a formação de identidades polonesas no Paraná, de identidades africanas na Bahia e de identidades bororo no Mato Grosso.
Cada vez que alguém começa a falar muito alto de "raízes" e de perda de identidade em conseqüência da invasão cultural estrangeira. está na hora de procurar a saída de emergência: a doutrina do "sangue e do solo" não está longe. Nada poderia frustrar mais radicalmente o exercício do direito à paz, porque a etnicidade não é outra coisa que a mitologilização neo-romântica-' da violência, uma ideologia que faz um SS pensar que é Siegfried e que o autoriza a metralhar um gueto em nome de suas raízes germânicas.
Para os que alegam que no Brasil esses extremos são inconcebíveis, respondo que uma política da etnicidade que tenha Macunaíma como herói é muito mais simpática que a que tem Odin como figura totêmica, mas na dúvida é preferível evitar até um -caráter nacional baseado na falta de caráter: no frigir dos ovos, Macunaíma pode se esquecer de dizer "ai, que preguiça" e, numa crise de heroísmo. defender pela violência essa identidade negativa, esmigalhando-se com seu tacape miolos inocentes. De novo, Voltaire tem razão, sem doses suficientes de universalismo que permitam estabelecer diálogos transnacionais e transculturais, - relativizando todas as identidades coletivas, o direito à paz, exteira e interna. poderia ser ameaçado no Brasil.
Eis a atualidade de Voltaite: a exacerbação, hoje em dia, do fanatismo, da tirania, da injustiça-, da miséria e da violência, mostram como precisamos do homem cuja mensagem infatigável foi a defesa do direito à tolerância e à razão, do -direito à liberdade individual & coletiva. do direito à justiça e à equidade. do direito ao desenvolvimento e ao bem-estar, do direito à paz e à universalidade.
SÉRGIO PAULO ROAUNET é filósofo e embaixador de carreira. autor de "As Razões do Iluminismo". entre outros,- foi ministro da Cultura (governo Collor) e atualmente exerce o cargo de cônsul-geral do Brasil em Berlim (AIemanha.); o texto acima é um extrato de sua conferência no Simpósio Voltaire, em Ouro Preto.
FILÓSOFO ESCREVE SOBRE O BRASIL
VOLTAIRE
Acabamos de ver, no meio das terras da América, multidões de povos civilizados, industriosos e aguerridos, descobertos e dominados por um pequeno número de espanhóis. Mas os portugueses, conduzidos pelo florentino Américo Vespúcio, tinham descoberto desde a época das viagens de Cristóvão Colombo, no ano de 1500, países não menos vastos, não menos ricos e povoados por nações completamente diferentes. Vespúcio chegou às costas do Brasil situadas perto do Equador.
E o terreno mais fértil da Terra, o céu mais puro e o ar mais saudável. O vento do Oriente, que a rotação da terra em seu eixo faz gerar continuamente entre os dois trópicos, depois de atravessar mil léguas de mar, traz ao Brasil uma doce aragem que tempera o calor de um sol sempre vertical e garante uma primavera eterna. As árvores desse solo desprendem um odor delicioso. As montanhas têm ouro, as rochas, diamantes e todas as frutas nascem nos campos não cultivados. A vida dos homens, limitada por toda parte a 80 anos no máximo, estende-se geralmente entre os brasileiros a 128, às vezes até a 140 anos. Ainda hoje vêem-se portugueses decrépitos embarcarem em Lisboa e rejuvenescerem no Brasil.
Mas que espécie de homens habitavam essa região pela qual a natureza tudo fez? Vespúcio conta em uma carta ao gonfaloneiro de Florença que os brasileiros são de cor bronzeada; talvez se se dissecasse um brasileiro com o mesmo cuidado com que se dissecaram negros, encontrar-se-ia em sua membrana mucosa a razão dessa cor.
Quanto aos costumes, eram inteiramente sem leis, sem nenhum conhecimento da divindade, unicamente ocupados com as necessidades do corpo; a mais interessante dessas necessidades era a junção dos dois sexos. Sua maior habilidade consistia no conhecimento de ervas que estimulavam seus desejos e que as mulheres se encarregavam de colher. A vergonha lhes era desconhecida. Sua nudez, que a amenidade do clima lhes impedia de cobrir, não envergonhava ninguém, e servia para confirmar o uso de não distinguir, no acasalamento, nem irmã, nem mãe, nem filha, das outras mulheres.
A necessidade de matar animais para servirem de alimento os levou a inventar o arco e as flechas. Essa era sua única arte. Serviam-se dela em suas disputas de homem a homem, ou de multidão a multidão. O vencedor comia com sua companheira a carne do inimigo. Vespúcio disse que um brasileiro lhe deu a entender que tinha comido 300 homens em sua vida e quando ficou sabendo que os portugueses não comiam seus inimigos demonstrou grande surpresa. Tal era, no mais belo clima do universo, o estado de pura natureza de homens que chegavam à mais avançada velhice em plena saúde.
Tradução de ELIANA SCOTTI MUZZI
Trecho extraído do livro "Essai sur les Moeura", cujo fac-símile -veja acima- será exibido por ocasião do Simpósio Voltaire, em Ouro Preto
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