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Domingo 20 de novembro de 1994 mais! Folha de São Paulo 6-4

Letras e Luzes de Voltaire
Amanhã faz 300 anos que o filósofo, dramaturgo, poeta e romancista François Marie Arouet nasceu em Paris

RICARDO MUSSE
Especial para a Folha

À luz da situação atual da divisão intelectual do trabalho, a obra de Voltaire, em seu conjunto, soa anacrônica, confusa e até mesmo incompreensível. Admitimos o in­teresse por todos os assuntos da cultura humana em gênios de uma outra época, como Da Vinci. Mas por que Voltaire, cujas opiniões são tão próximas às nossas e tão de acordo com a realidade do mundo industrial, não se concentrou em especialidades determinadas?

Essa questão nem sempre é pos­ta assim tão brutalmente. Aliás, na maioria das vezes, sequer é expli­citada. Mas, nem por isso deixa de ser tematizada. Para uns, a trajetó­ria de Voltaire resulta de um equívoco. Ele quis, inicialmente, ser o sucessor de Racine- logo, um continuador do classicismo poéti­co- visando, num arrivismo típi­co da época, o aplauso e a proteção da corte. Idiossincrasias (dele e de Luís 15) e vicissitudes levaram-no, porém, à filosofia, ao combate duplo à religião e ao Antigo Regime, ou seja, à sua verdadeira vocação.

Para outros, porém, não se trata apenas da descoberta tardia de uma vocação autêntica, mas antes da disseminação de uma concepção filosófica em terrenos afins. As­sim, a história e os contos voltaire­anos-enunciados junto com a ru­brica “filosóficos''- são tomados como meros pretextos para a in­vestigação filosófica, ou melhor, são avalizados enquanto suportes ideais para a difusão esclarecida de uma visão racional do mundo.

A tese, inegável, do predomínio de uma concepção racional, os per­mite compreender melhor, por exemplo, o assunto dos contos de Voltaire, ou o historiador. Senão, como bem mostra G. Lanson, co­mo entender a disposição, aparen­temente sem nexo, dos capítulos de "O século de Luís 14" a não ser pela subordinação da própria seqüência histórica a uma idéia geral, a um plano predeterminado? No entanto, essa explicação deixa de lado partes importantes da obra de Voltaire. Não contempla as tragé­dias, a poesia épica, certas sátiras ou mesmo porções de livros de his­tória onde a preocupação com a exatidão se sobrepõe às teses da fi­losofia da história. Mais ainda, altera completamente o significado peculiar que o século 18 francês deu ao termo filosofia.

Na verdade, o que faz com que os especialistas de hoje dêem pouca atenção à obra de Voltaire ou o vejam como um mero diletante- para historiadores, trata-se sobretudo de um filósofo que cometeu" livros de história; para os literatos, de um autor de romances de teses; e mesmo para filósofos, apenas de um autor menor incapaz de vôos metafísicos ou de desen­volver um sistema próprio -é a enorme distância que separa a atual divisão universitária em faculdades e saberes distintos das práticas e tarefas intelectuais do séc. 18. Por filósofo, compreendia-se na época, não autores de tratados teóricos, ou mestres-pregadores a doutrinar dis­cípulos, mas sim aquele que dá o exemplo vivo de liberdade, de in­dependência e de audácia no exercício cotidiano do discernimento e da razão.

É a partir desse conceito de filo­sofia que designa antes uma atitu­de do espírito e uma forma de re­flexão do que a atividade solitária do construtor de sistemas, que de­vemos medir e tentar compreender a obra de Voltaire. Neste padrão, a maior parte das considerações aca­dêmicas perdem a pertinência. Afi­nal, como acusá-lo de diletantis­mo, se o que importava para os ilu­ministas era abordar tantos campos quanto possível substituindo, com a aplicação dos princípios da ra­zão. a tutela da metafísica e da teo­logia? Como acusá-lo de pouco dotado para a ''especulação)'', se se tratava de um pensamento anti­sistemático, avesso as indagações da metafísica e voltado essencialmente para a ação humana. para a intervenção esclarecida?

Mais ainda. E esse conceito de filosofia. com seu interesse priori­tário no bem-estar social e sua aversão à especialização, que torrna inteligível tanto algumas de suas opções teóricas quanto o seu des­leixo voluntário frente às especificidades dos diversos saberes.

É sobretudo um interesse práti­co- a preocupação em fazer da re­construção do passado um conhecimento útil para a ação do presente- que o impulsiona, por exemplo. a fazer da história um conheci­mento humano e dessacralizado. A discordância em relação à concep­ção de Bossuet de Providência di­vina é apenas o caminho teórico que lhe permite clarificar melhor a sua tarefa. Mesmo a sua recusa em procurar respostas definitivas às questões últimas decorre antes de uma distinção entre o que importa -a ação sobre o mundo social- e o que é inútil -indagações metafísicas-, do que da adoção de uma variante da teoria do conhecimento de Locke.

A distinção usual, na seara aca­dêmica. entre saberes, a cataloga­ção dos textos em disciplinas espe­cíficas não se aplicam sem dificul­dades à obra de Voltaire. Já se dis­se aqui que seus livros de história e seus contos devem muito à filosofia. Mas a recíproca também é verdadeira. A forma de seus textos mais filosóficos (aqueles que con­tém esse termo no titulo), a clareza e o refinamento do estilo, a presen­ça de um enfoque e de uma erudi­ção histórica reafirmam, por sua vez, a sua condição de escritor e de historiador. Na verdade isso nos le­va a pensar que a melhor definição de sua atividade seja dada por aquele termo cujo verbete ele fez questão de redigir na 'Enciclopé­dia": "homme de lettres". Se é assim -respondendo sucintamen­te à questão inicial- a maior infi­delidade possível para com Voltai­re seria confundir sua fé no pro­gresso da civilização com o mal-estar que a racionalização do mun­do industrial nos legou.

RICARDO MUSSE e professor de filosofia na Unesp -Universidade Estadual Paulista

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