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O batismo do mundo segundo Wittgenstein

Folha de São Paulo - Domingo, 26 de fevereiro de 1995 - p. 6 - 9


O batismo do mundo segundo Wittgenstein




JOÃO VERGÍLIO G. CUTER

Especial para a Folha


"Palavras designam objetos; sentenças são designações concatenas": esse é o mote que dá início àquela que é talvez, a mais influente obra de filosofia de nosso século as "Investigações Filosó¬ficas" de Ludwig Wittgenstein (1899-1951), recentemente lança¬das pela editora Vozes numa nova tradução de Marcos G. Montagnoli, com revisão técnica e prefácio de Emmanuel Carneiro Leão.

Difícil imaginar mote mais singelo. Mais difícil ainda, talvez, seja acreditar que alguma coisa importante possa ser pensada a partir dele. A maioria das pessoas, diante da frase, tenderia a pensar algo mais ou menos assim: "Muito bem, tudo isto parece óbvio. Sentenças são compostas de palavras e palavras designam coisas do mun¬do - mesas, cadeiras e tudo mais. E daí?". Como é possível que alguém tenha exercido tanta influên¬cia após passar a vida toda meditando sobre esse tipo de banalida¬de?

Não há exagero em pensar que Wittgenstein tenha passado a vida meditando sobre aquele mote. Aos 33 anos, publica um livro, o “Tractatus Logico-Philosophicus” , que, em essência, vai fazer a mais radical (porque mais conseqüente) defesa de uma concepção da linguagem compatível com ele. As "Investigações Filosóficas", publicadas postumamente, são o ataque mais devastador a toda e qualquer concepção da linguagem e da racionalidade humana que seja compatível, ainda que remotamen¬te, com o que aquela frase singela quer dizer. E a importância do li¬vro é justamente aí.

O pensamento clássico legou-nos uma infinidade de concepções a respeito do que seja a razão hu¬mana e do que seja o mundo que essa razão procura conhecer e so¬bre a qual pretende agir. Quase to¬das essas concepções implicam ne¬cessariamente o que vem dito na¬quela frase. Aceitar o argumento das "Investigações Filosóficas" é, portanto, recusar concepções há muito tempo acalentadas do que seja a racionalidade humana. Que nova concepção podemos ter, ago¬ra, ainda não é claro. Mas é perfei¬tamente claro que nada de muito semelhante irá surgir.

Mas qual era, exatamente, a questão que Wittgenstein responder? Ou, mais exatamen¬te, qual seria a questão em torno da qual, para ele, todas as outras ques¬tões se articulavam? Girar o botão de um rádio é uma experiência que pode nos conduzir ao problema do qual Wittgenstein ocupou-se du¬rante toda a vida. Quando nenhu¬ma emissora está sendo sintoniza¬da, os ruídos que ouvimos têm uma existência meramente física. São apenas sons, nada mais. A res¬peito deles, podemos dizer muitas coisas: que são altos ou baixos, se¬melhantes a isto ou aquilo. Eles próprios, porém, nada dizem.

O que acontece, então, quando esses ruídos dão lugar à voz de um locutor? Podemos, sem dúvida, descrever fisicamente esta voz e determinar inclusive certas propriedades que a fazem ser diferentes, enquanto som, dos ruídos que ouvíamos. Um físico faria isto fa¬lando em termos de comprimentos de onda, freqüência e coisas do gênero. Uma voz falando em português seria, neste tipo de descrição, análoga ao canto elaboradíssimo de um pássaro. Uma voz falando em chinês, ao de uma subespécie igualmente exótica.

Sentimos, porém, que na voz do locutor há algo mais que isto, pois, além de ouvirmos, entendemos o que ele fala. O que entendemos, porém, ao ouvirmos o rádio, não poderíamos encontrar em nenhuma descrição física da voz. A voz do locutor está para o ruído como o corpo humano para uma pedra. (O locutor chinês, para quem não o entende, seria como um corpo sem vida.) O que é isto, então, que dá vida ao som?

Quem me lê, agora, também tem uma série de ocorrências físicas sob os olhos (tiras impressas num elaboradíssimo padrão). Se tivesse, porém, diante de si um jornal nu¬ma língua desconhecida, as tiras decorativas estariam ali (uma "su¬bespécie" destas que você vê), mas algo estaria ausente. O que vem a ser o sentido, essa espécie de alma capaz de transformar em sentenças as manchas de tinta que vemos sobre o papel? Como foi possível ao sentido unir-se a essa espécie de corpo? Foi em torno desta inquietação que toda a filosofia de Wittgenstein, do começo ao fim, se organizou.

Há casos em que a resposta à questão parece bastante simples. O batismo, por exemplo, parece ser capaz de realizar o milagre desta união entre a alma e o corpo da palavra. Pelo batismo, um novo nome é incorporado à linguagem'. O som do nome, arbitrariamente escolhido pelos pais, torna-se, pelo batismo, unido à pessoa que é batizada. Irá de agora em diante, representar essa pessoa na esfera da linguagem. Quando falarem dela, pronunciarão seu nome (ou algo equivalente a ele). Enquanto som, nada aconteceu ao nome - da mes¬ma forma que nada acontece ao corpo de um parlamentar pelo fato de ter sido eleito.

O nome, porém, como o parla¬mentar, está investido de uma função peculiar. Esta função manifesta-se no fato de que, quando eu ou¬ço ou pronuncio aquele som, não o faço à maneira de um papagaio, mas quero "dizer algo" por intermédio. Tampouco um analfabeto quando assina, está fazendo um complicadíssimo desenho. Neste ponto exato terminaria o ani¬mal e começaria o homem: na ca¬pacidade de realizar o milagre do batismo.

Assim funcionava, sem dúvida, a linguagem de Funes, o prodigioso tetrapéglico que, inerte numa cama, ia batizando cada detalhe de cada instante que vivera ou poderia ter vivido. A cada instante, Funes criava uma infinidade de palavras, e cada uma delas ressoava numa corda bem determinada em sua memória Uma sentença era obtida pela justaposição destas palavras, cujo efeito era, então, um acorde. É verdade que Borges via em Fu¬nes sinais muito claros de oligofre¬nia, mas é sempre possível pensar, também, que não teria dedicado o tempo necessário para ouvi-lo.

Seja lá como for, a memória de Funes não parece ser condição necessária para a solução do enigma da linguagem por intermédio da cerimônia do batismo. A solução é, na verdade, muito simples, e admi¬tiria um grande número de varian¬tes, todas elas construídas a partir de um mesmo mote: palavras de¬signam coisas; sentenças são concatenações de palavras e represen¬tam, assim, coisas concatenadas.

Estas concatenações de coisas não precisariam existir para que uma sentença tivesse sentido. Se eu disser que as letras impressas nesta página são todas vermelhas, você entende o que eu estou dizendo e é capaz, inclusive, de comparar o que eu digo com aquilo que você está vendo. Sabe o que foi ba¬tizado, em português, com os no¬mes "letra", "vermelho", etc., e a concatenação destas palavras apresenta diante de você, uma certa figura, digamos assim, que você compara á página do jornal. Neste caso, há uma discordância e, por isso, a sentença é falsa. Se eu disser "As letras desta sentença são negras", você irá intuir uma perfeita concordância entre a "figura" que se formou e a página. Neste caso, a sentença é verdadei¬ra.

Não creio que Wittgenstein te¬nha jamais pretendido negar legiti¬midade aos batismos. O que ele nega, isto sim, é que o sentido propo¬sicional nasça de uma concatenação de ba¬tismos e que estes, quando ocorrem, con¬sistem numa certa "associa¬ção" que deve, em última ins¬tância, ser levada a efeito pela mente de cada um de nós (ou en¬tão, como queria o "Tractatus", por Aquele-que-não-tem-nome, que está fora do tempo e do espaço e que pressinto, às minhas costas, no Além-mundo).

Suponhamos que uma criança, após algum treinamento, tenha aprendido a utilizar a palavra "ca¬deira". Suponhamos, ainda, que esse treinamento envolveu, entre outras coisas, a apresentação à criança de algumas cadeiras. Apontando para tais objetos, o ins¬trutor vai repetindo o som "cadei¬ra". Depois de algum tempo, a criança, sozinha, profere a palavra cadeira diante de objetos daquela espécie.

Até aqui, nada de extraordinário. Se nos perguntamos, porém, como poderíamos descrever o resultado desse processo, nossa tendência se¬rá, quase que certamente, recorrer às associações mentais. O que aconteceu, diríamos, é que a crian¬ça associou mentalmente o som à coisa. E, neste ponto, começa o calvário do mentalismo.

Que coisa? As cadeiras que ela viu? E as que ela ainda não viu? Não deverá, também, chamá-las pelo mesmo nome? (O mentalista acusa o golpe, mas volta à carga: não se trata apenas de associações mentais, mas de associações entre sons e imagens mentais. Ou, de forma ainda mais ousada: associa¬ções mentais entre imagens sono¬ras -também mentais- e um ponto num sistema -mental, na¬turalmente- de relações.)

Prossegue o calvário que tipo de imagem? Uma cópia exata? De qual cadeira? Do que elas têm em co¬mum? E se a criança estiver diante de uma cadeira que não tem alguma daquelas características? Há um conjunto de características que todas compartilham? Que conjunto é este? (Aqui intervêm uma série de derrotas humilhantes.) E esse esquema ou imagem mental - seja ele lá o que for- não teria, ele também, que ser interpretado? Não teria que ser aprendido? E aprender não significa, segundo você diz, associar? O que com quê? (Reco¬meça a surra, agora com o auxilio da Terceira Cadeira.)

E suponha que você pudesse ve¬rificar se a criança tem ou não alguma "imagem" desse tipo na cabeça (por meio, digamos, de algum tipo muito avançado de exame cerebral). E, apenas por hipótese suponha que você verificasse que ela não possui qualquer imagem seme¬lhante (ainda que remotamente) a uma cadeira. E que, apesar disso ela continuasse a chamar cadeira de "cadeira". Você diria que aquilo prova que ela não entende a pa¬lavra cadeira? (Sem aquele “exame avançadíssimo no cérebro”, então, jamais saberemos se está entendendo o que falamos...) Ou será que você diria que ela entende perfeitamente a palavra apesar de não possuir a imagem? (E, neste caso, o que você está admi¬tindo é que a imagem é totalmente irrelevante enquanto critério para o entendimento da palavra...)

A idéia de que o passo fundamental na constituição do sentido seria dado por uma associação que o indivíduo faria mentalmente entre palavras e coisas é suficiente, sem dúvida, para posicionar ó mdi¬víduo (ou, mais especificamente, a "mente humana") no centro da racionalidade.

É no interior da linguagem, no interior de determinadas regiões da linguagem, que se estabelece a distinção entre o verdadeiro e falso, entre a certeza e a dúvida, entre o certo e o errado, entre a realidade e a ficção. Dizer que a linguagem poderia constituir-se apenas com base neste jogo de associações privadas, que o indivíduo poderia, idealmente, criar e jogar consigo próprio, é dizer que o indivíduo humano é medida do verdadeiro e do falso, da certeza e da dúvida, do certo e do errado, da realidade da ficção. -

Se, na expressão 'indivíduo humano, damos ênfase à palavra "indivíduo", estaremos metidos na cela do relativismo desvairado que, no "Teeteto',, Platão põe na boca de Protágoras; se a ênfase re¬cair sobre a palavra "humano", te¬remos, então, o horizonte cheio de promessas da Razão incorporado em cada um de nós. De Protágoras, suponho, ninguém sente saudades. Mas, com a Razão clássica, é dife¬rente. Há coisas demais a serem deixadas no caminho. A questão é saber exatamente o que nos foi dei¬xado em troca. E, ainda que não se tenha, aqui, uma resposta clara, já sabemos, a esta altura, que uma outra questão está indissoluvel¬mente ligada a esta.

O que dá vida ao símbolo? O que vem a ser o sentido proposi¬cional? A resposta de Wittgenstein, nas "Investigações Filosófi¬cas" é - o uso. Entender a palavra cadeira não é nada além de saber usá-la nas situações adequadas. E a partir do momento que a criança aprende a utilizar uma expressão que esta expressão adquire aquilo que tendemos a chamar de "vida". Ela deixa de ser um som entre ou¬tros e passa a ser um som significa¬tivo.

Este uso, porém, não deve ser entendido como uma exterioriza¬ção de regras que cada indivíduo guardaria "dentro de si", na alma, na mente, no cérebro, ou sabe-se lá onde. Não é difícil, creio, imaginar o roteiro de "O Calvário - Parte 2". (O que é uma regra? Uma fór¬mula? E que regra devo seguir para aplicá-la? Um diagrama? E que re¬gra seguir para interpretá-lo? etc.)

Não que o uso da linguagem não seja uma atividade sujeita a regras. Se a linguagem não envolvesse re¬gras, não haveria como distinguir o uso correto do uso incorreto de uma expressão. Esta distinção, po¬rém, impede que eu, o indivíduo humano, entre sorrateiramente pela porta dos fundos para reocupar o posto de medida de todas as coisas. O indivíduo, isolado, pode no máximo ser medida do que lhe parece correto ou incorreto.

A vida da linguagem, porém, exige distinção mais forte. O que permite o uso da linguagem no co¬mércio social é o fato de que o ar¬bítrio a respeito do que é e do que não é correto coloca-se numa ins¬tância que escapa ao alcance dos indivíduos isolados -aquela ins¬tância, justamente, em que pode¬mos dizer: "isto pode até lhe pare¬cer correto, mas não e". A lingua¬gem só pode ganhar vida num ter¬reno em que tal distinção seja possível. Na alma, na mente ou no cérebro, ela certamente não é.

Aceitar o argumento das 'Investigações Filosóficas" é, em grande medida, repassar a um "nós" as tarefas que a filosofia clássica atribuíra ao "eu". E aceitar, também, que só por um feliz acaso esse "nós" coincidiria com a espécie humana. As diversa pretensões de validade que orien¬tam a vida humana (a verdade, a sinceridade, a correção moral, a beleza) teriam escapado das gaiolas de Protágoras apenas para cair nas celas mais amplas da cultura, da época, dos paradigmas científi¬cos ou da última moda.

Já não há um mundo estável à nossa frente, povoado de objetos e fatos, esperando que a linguagem os recubra, nem um eu postado à porta do universo com o metro da verdade. O mundo das "Investiga¬ções Filosóficas" é, definitiva¬mente, o nosso mundo e, se a ra¬cionalidade puder ser reconquista¬da, é dentro dele, apenas, que po¬deremos encontrá-la.

Por tudo isso, pela importância que tem para o pensamento con¬temporâneo, eu deveria encerrar este artigo saudando a publicação que a editora Vozes nos oferece. Não é o caso. Mais uma vez, é pre¬ciso constatar a triste realidade: subdesenvolvimento não é apenas falta de dinheiro, mas o péssimo uso do pouco que se tem. Já havia no mercado, duas más traduções das "Investigações Filosóficas’: a publicada na coleção Os Pensado¬res e outra, portuguesa, patrocina¬da pela Fundação Calouste Gul¬benkian. Agora, temos três.

Não me refiro, é claro, apenas a minúcias (erros de digitação ou de português). Elas poderiam, sem dúvida, ser apontadas e, para quem faz uma primeira leitura do livro, podem representar um obstáculo sério (pontos de interrogação, por exemplo, foram substituídos por pontos finais em mais de uma pas¬sagem). Não me refiro, tampouco, a opções que, na minha opinião, são menos felizes (como traduzir "meinem", do começo ao fim, por "ter em mente").

Refiro-me, por exemplo, ao fato haver, em média, um parágrafo a cada três páginas que, na tradução, -tornou-se, ou completamente in¬compreensível, ou completamente discordante do original. Refiro-me a sentenças inteiras que foram completamente suprimidas, ou, ainda, à figura do parágrafo 48, cu¬jas cores foram substituídas por uma legenda que, ela mesma, está completamente incorreta.

A tradução não é irrecuperável, mas, tal como está, não passa de um rascunho necessitando urgente¬mente de uma revisão técnica que, apesar de alardeada na página de rosto, na melhor das hipóteses não foi feita. A tradução inglesa da Sra. Anscombe, é excelente, bastante barata e facilmente encontrável.



JOÃO VERGILIO GALLERANT CUTER é professor de filosofia da Pontificia Universidade Católica (PUC-SP)



A OBRA

Investigações Filosóficas, de L. Wittgenstein. Tradução de Marcos G. Montagnoli. Editora Vozes

Comentários

  1. "Quando nenhu¬ma emissora está sendo sintoniza¬da, os ruídos que ouvimos têm uma existência meramente física. São apenas sons, nada mais. A res¬peito deles, podemos dizer muitas coisas: que são altos ou baixos, se¬melhantes a isto ou aquilo. Eles próprios, porém, nada dizem."

    "Eles próprios, porém, nada dizem."
    Isto é uma barbaridade não-wittgensteiniana, porque é claro que às vezes eles "dizem" algo sim.

    Esse texto é de uma superficialidade escandalosamente mentirosa ou, na melhor hipótese, fruto de uma ignorância cega e desencontrada.

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